sexta-feira, 24 de abril de 2020

Com o coração a saltar pela boca!

‘Não saias à rua que podes apanhar o vírus!’… Disseram-me e eu cumpro. Não saio. Nunca mais saí… Quando tentei sair, uma vez, desfaleci. E aqui estou. Dizem que a vida nunca mais será a mesma… Acabou?... Assim… tão cedo?... Podemos estar sós ou acompanhados que, muitas vezes, temos o coração a saltar pela boca. E isso faz-nos paralisar, suar fininho, arfar, tremer das mãos, perder a força nas pernas, ficar com a ‘vista turva’. Será que não há remédio?... Há solução, sim. Tive um professor brilhante, nos meus primeiros anos de faculdade, que cultivava hábitos exóticos. Morava numa casa campestre, perto de Cascais. Tinha a porta de casa sempre aberta. Na soleira estava uma ânfora quase da nossa altura, antiga, quebrada. Os vários bocados estavam espalhados a um canto. Dizia ele que, um dia, quando não tivesse nada que fazer, poderia colar, tranquilamente, toda a ânfora. E acrescentava ‘Espero nunca conseguir ter tempo para fazer isso.’ Para mim foi uma lição de vida que remoí, ano atrás de ano. Diz-se que ‘certa, só a morte’. Pois sim. Digo-vos que quem morre terá de ter sempre algo que deixa incompleto. Isso é que é o sinal radioso de que estava vivo. Quem se resigna a esperar e deixa de viver para agonizar (‘Nada posso fazer que me ‘saltam os bofes pela boca!...’), acaba por se dispor, sem querer, a aceitar o que tanto teme. Se estás neste caso vai, ao menos, á janela, e espreita o céu. Há sempre, ao menos, um farrapito de nuvem a passar e um o outro pássaro que cruza os nossos olhos. É sinal que a vida flui, não pára, numa força incontrolável. Tu tens de entender isso. Telefona e fala. Evoca os episódios bons da tua vida. Ri!... Pragueja!... Grita!... Enternece-te. Chora!... Qualquer coisa é melhor que ficar zombie. (É que se corre o risco de… acordar morto!)

sábado, 18 de abril de 2020

Instruções para o uso adequado do GRITO.

Imagina um gato assustado. Nem conhece o dono. Os olhos cheios, em alvo, parecendo ver tudo e, afinal, não estando a ver nada!... As orelhas espetadas parecendo ouvir melhor e, afinal, não escutando nada senão… o Medo!...
Quieto (mas não… em sentido!). Garras a espreitarem nas almofadinhas 
(prontas a dilacerar qualquer coisa que se ponha à frente!).
Assim, somos nós perante os gritos (nós… os filhos… qualquer um do casal… 
os da família…)
O GRITO é um sinal de desespero – o desespero de quem grita. 
Um sinal de mal-estar com os outros – o mal-estar de quem grita. 
Um sinal de forças quebradas (verdadeira fraqueza! – a fraqueza de quem grita). 
E o efeito nos outros é… Não escutar… para não sofrer mais. 
Não ver bem… para não entristecer. Calar… para ver se pára a loucura. 
Mas todos esses outros – que não gritam – sofrem. Muito. Em silêncio. 
Por isso, quando o teu vulcão interior te rebentar pela boca 
e o fumo te sair pelas orelhas…  Tenta conter-te. Se começaste, pára! 
Depois olha para os outros e vê bem. Têm tanto de bom como tu. 
A Felicidade está escondida num recanto de ti. 
Usa-a.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Depois de tantos anos

[Éluard, Paul. Poèmes politiques, 1948.                                                                                        Oeuvres II, p. 225. “Après tant d’anées”]
Depois de tantos anos de martírio
De tantos anos-pó muito mais longos
Que anos-luz seguindo um astro perdido
De novo miséria a dar e vender
Por nada, que pra nós não é palavra
Lutando e trabalhando falimos
O desespero deita onde dormimos
Sonhamos abraçar saúde e jovens
A boca e a cabeça ainda sonham
A vida vai mudar como um infante
Não desesperamos, sobrevivemos
Tudo nunca foi tão duro tão obscuro
Mas a noite não se misturou ao sangue
Mais um passo juntos rompe-se o beco
Dando a nós todos o bem e um rumo.